Encontro Clássicos Interclubes de Junho, em Goiânia. Arquivo próprio. |
Não faz muito tempo, nem vinte anos, o dono de uma oficina de Lambrettas disse que me entregaria uma delas por seiscentos reais. Corrigido, isso hoje não dá mais do que novecentos. O grande problema é que eu estava desempregado e contava moedas para pagar a passagem do ônibus. Uma particularmente feia e maltratada, embora funcionasse, estava por menos de trezentos e cinqüenta.
Não estavam ruins, as opções que me ofereceu. Marcas do tempo, algumas com pequenos amassados, uns descascados na pintura, mas a rigor todas aptas ao trabalho de leva-e-traz que me livraria da dependência dos malditos paus-de-arara que cobram os tubos para te sacolejar e machucar à menor frenagem brusca. Quem é de Goiânia sabe o que digo, quem é do Rio de Janeiro se desespera só de lembrar que precisará daqueles calabouços ambulantes novamente.
Na época, início do século, desde os anos 1980 que uma Lambretta não valia nada. Dependendo da aparência, ainda que funcionasse bem, não valia mais do que seu peso como sucata. Ela tem seus pontos fracos, é claro. Os pneus de aro 10" são muito vulneráveis a buracos e lombadas, embora isso nunca tenha sido empecilho em cidades com pouca infraestrutura no interior.
Fazer curvas fechadas em alta velocidade com ela é um desafio, porque o assoalho é largo e baixo o suficiente para raspar e até derrubar os candidatos a piloto de corrida. Por isso, quando estavam em alta, havia os que retirassem o assoalho para participar de competições de rua, que Goiânia já teve... o asfalto ainda era bom o bastante para isso.
O motor é um caso à parte, sua concepção é pré-guerra, isso lhe custa caro para quem quer status e (a concepção vigente de) diversão. O motor dois tempos de 175cc da Ii 1971 não passa de 9cv, que hoje é potência para 100cc ou menos.
Já deixei vocês tristes, agora vamos às virtudes. Em primeiro lugar, todos os pneus têm as mesmas medidas, e ainda há um estepe. Que motocicleta tem estepe? A fixação dos pneus os torna fáceis e rápidos de trocar, e seu tamanho os torna leves, até mesmo uma criança maiorzinha, com treino, consegue fazer o serviço. Empurrar uma Lambretta a procura de uma borracharia é piada.
O assoalho, que gera críticas dos infratores de trânsito, permite que se viaje por horas sem cansaço, porque viaja-se sentado, com os pés bem apoiados e, se precisar, dá para levar as compras lá. Junto com o peito de aço, igualmente largo, é um grande amigo das usuárias de minissaias, porque ninguém vê nada, a privacidade é garantida não importa o tamanho da peça.
Encontro Interclubes em Goiânia, em Novembro de 2018. Modelo da Pin-up Girls Gyn. Arquivo próprio. |
A troca de marchas é no manete direito, girando-se o dial. Nada de dar toques e correr o risco de a marcha não entrar, ou entrar a marcha errada. Lá está a indicação da marcha que está engatada. Se uma motocicleta vier com isso hoje, a fábrica fará um estardalhaço como se fosse a última conquista tecnológica da humanidade, e cobrará o preço por isso.
O motor dois tempos, banido pelos índices de poluição, que o uso de óleos vegetais resolveria sem maiores dramas, embora gire pouco e assim gere pouca potência, tem muita força. Eu já testemunhei nos idos de 1986, a insólita cena de uma Lambretta vencer um longo e íngreme aclive enlameado com pai na frente, mãe atrás, um rebento entre eles e mais dois, um no assoalho e outro no estepe... Foi uma loucura, porque ela subiu. Não muito rápido, mas subiu! Havia carros de tração dianteira sofrendo para fazer o mesmo!
Embora precise misturar combustível e lubrificante no tanque, é uma máquina muito robusta e confiável, que se bem cuidada não dá manutenção praticamente nenhuma. A tradição da Lambretta de fabricar veículos em duas cores, dá uma personalidade que a pasteurização do design faz os fãs da Honda CG terem saudades das versões antigas, especialmente a redondinha que já foi descaradamente clonada por fabricantes chineses no Brasil.
Apesar de a velocidade ser motivo de piada, é possível viajar em uma Lambretta, especialmente porque ela permite levar bagagem sem desconfortos ou perda de segurança, com acessórios de época o estepe pode se converter em bagageiro. Vai devagar, mas chega. Para uso urbano a potência sobra e o charme chama mais atenção do que essas horripilâncias empinadoras de derrièrre, que só chamam atenção de homem mesmo.
O nome é tão forte, que a Lambreta voltou a ser produzida, mas agora sem o apelo popular de outrora. Ver aqui, aqui e aqui. Agora ela é cara e a pintura em dois tons é opcional, mas ao menos a robustez do quadro foi mantida.
Por tudo isso, aquela Lambretta arrebentada que citei no começo por R$ 350,00, não sai hoje por menos de mil. Os fãs perderam a vergonha e estão restaurando as suas, e a demanda fez o preço subir muito, mas também fez a oferta de peças e mão-de-obra crescer consideravelmente; o que aumenta o argumento de venda e consigo o preço. Se antes não valiam mais do que seu peso como sucata, hoje a sucata de uma vale seu peso em ouro.